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Modelo tarifário brasileiro transfere custo de desenvolvimento da indústria de automóveis para o passageiro do transporte coletivo

A transição energética e tecnológica dos transportes para alternativas menos poluentes é uma estratégia fundamental que pode gerar benefícios econômicos e sociais para países em desenvolvimento, como o Brasil, devido à sua capacidade de geração limpa de energia elétrica e produção de matéria-prima para biocombustíveis.

Neste contexto de eletrificação, os ônibus têm atuado como grandes indutores do desenvolvimento fabril e tecnológico no Brasil, tendo sido uma realidade no País muito antes de os carros elétricos se tornarem comercialmente mais comuns. No entanto, segundo especialistas, essa liderança está gerando uma grave distorção, semelhante a erros históricos na indústria: são os passageiros dos ônibus e também do transporte sobre trilhos que estão bancando os avanços e modernizações que beneficiam toda a linha de produção, incluindo o desenvolvimento e a importação de carros, caminhões e motos elétricos, híbridos, e até mesmo modelos de luxo.

Quem alerta para o problema é Luiz Carlos Néspoli, superintendente da ANTP (Associação Nacional de Transporte Público), entidade que reúne diversos especialistas do setor. Para Néspoli, o nó da questão reside na forma como o transporte coletivo é financiado no Brasil, majoritariamente através das tarifas. O posicionamento do especialista foi feito em uma entrevista ao Blog Diário do Transporte.

O mecanismo é direto: os passageiros dos transportes públicos bancam, por meio das tarifas, a operação e a compra dos ônibus. Quando as empresas de ônibus pagam as fabricantes, o custo do desenvolvimento fabril e das novas gerações de produtos está inserido no preço do veículo. Uma vez que os recursos das empresas vêm da tarifa, é, na prática, o passageiro quem paga a indústria.

Ocorre que, pela indução do desenvolvimento impulsionada pelos ônibus, especialmente os elétricos, a produção ou importação de outros veículos – como carros – acaba se beneficiando. Assim, indiretamente, os passageiros de ônibus estão financiando estratégias comerciais e o desenvolvimento de carros, caminhões e motos.

Questionado se um passageiro de ônibus estaria pagando o desenvolvimento de um “mega carrão de luxo”, Néspoli é categórico: “Sem dúvida nenhuma”. Ele explica que, no modelo atual de financiamento, o capital imobilizado e o custo da tecnologia são levados para dentro da planilha tarifária.

“A história e o erro, portanto, se repetem, apenas com a tecnologia mudando: em vez de o transporte individual financiar o transporte público, o cidadão que possui a menor renda e utiliza o ônibus é quem acaba financiando quem anda de carrão”, analisa. Néspoli aponta que não é justo que esse custo recaia sobre aquele cidadão que tem menos renda na sociedade.

Apesar da injustiça no financiamento, o especialista ressalta que a transição tecnológica é vital. A introdução da descarbonização e do ônibus elétrico, com a consequente redução de poluentes, é muito boa para o País, para as cidades e para o mundo, atendendo aos interesses de toda a sociedade e dos governos.

Contudo, se a evolução vai atender a toda a sociedade, não é justificável que a conta recaia, única e exclusivamente, na tarifa pública que é paga por aquele passageiro, que não pode ser o único a responder por essa tecnologia.

Para evitar que o custo da transição tecnológica, que envolve adaptações e investimentos industriais, continue subindo para o usuário – como já ocorreu com a aquisição de ônibus Euro 6, mais caros que os anteriores –, o financiamento deve ser compartilhado.

Luiz Carlos Néspoli afirma que a solução não é travar a expansão da frota de ônibus elétricos. Pelo contrário, por ser de interesse público, toda evolução tecnológica que envolve custos de transição necessita de uma participação do Estado.

O segredo, segundo o superintendente da ANTP, está em garantir o financiamento justo para que as ampliações de frotas de ônibus elétricos (e de outras alternativas ao diesel) sejam significativas. “Para isso, o poder público (federal, estadual e municipal) deve ser parte desse processo de transição, e o Estado e o dono do carro devem bancar este desenvolvimento fabril e de produtos”, diz.

Na visão do especialista, o financiamento da transição tecnológica, se feito apenas pela tarifa, é como tentar encher um reservatório gigantesco (o desenvolvimento industrial) usando apenas um pequeno funil (o bolso do passageiro do ônibus), enquanto toda a sociedade desfruta da água limpa. A solução proposta é envolver um sistema de bombeamento mais amplo e equitativo (o Estado e os motoristas de transporte individual).

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