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A cidade abandonou o ônibus — e agora paga o preço da fuga do passageiro

Confira o texto de Alexandre Pelegi, jornalista especializado em transportes, do Blog Diário do Transporte, sobre a situação dos sistemas de transporte público no Brasil. Nele, especialistas debatem a fuga do passageiro, que vem sendo empurrado para fora dos sistemas de transporte urbano.

Confira:

O setor de transporte incorporou nos últimos anos o termo “cliente” para se referir ao passageiro do transporte público. A mudança, que poderia representar uma nova visão de prestação de serviço, acabou escancarando um problema crescente: o poder concedente não tem conseguido manter, muito menos conquistar, quem depende do ônibus para se deslocar.

Em qualquer setor de serviços, a perda de clientes gera perda de receita. Sem receita, cai a qualidade. Com a qualidade em queda, o ciclo se retroalimenta, fato que já é visível e preocupante no transporte público urbano.

Diferentemente do mercado, onde o cliente é disputado pelas empresas que dependem dele para existir, no setor público esse entendimento não existe. Hoje pode-se dizer, sem sombra de dúvida, que não é o mercado que está tirando o passageiro do ônibus, mas o serviço público que está empurrando o passageiro para fora.

De novo apelando para a figura do mercado de serviços, todos sabemos que quando um fornecedor começa a perder clientes, inicia-se um ciclo de risco: menos receita gera perda de qualidade, que gera ainda menos clientes.

Para Karolina de Jesus, especialista em mobilidade e justiça social do WRI Brasil, o sistema entrou numa zona crítica: “Estamos vendo um processo de deterioração que não tem origem na concorrência, mas sim na incapacidade do poder público de oferecer aquilo que o passageiro valoriza: confiabilidade e velocidade.”

O fator central para a qualidade percebida no ônibus pelo passageiro é a velocidade das viagens. E essa variável depende quase exclusivamente da gestão do espaço urbano, e não do operador. Nem do veículo, seja elétrico ou Euro 6.

O que sabemos é que muitas cidades seguem priorizando carros e obras de grande porte, em vez de medidas operacionais simples e eficazes, como faixas exclusivas e semáforos inteligentes.

“O ônibus só é competitivo quando tem prioridade. Sem isso, a lógica é perder clientes todos os dias”, observa Marcos Bicalho, consultor da NTU, que completa: “Não existe tecnologia veicular capaz de compensar um congestionamento que poderia ser evitado com gestão.”

Mas se o poder concedente é incapaz de reter seu cliente (ou passageiro), aplicativos e modais alternativos avançam porque oferecem algo cada vez mais raro no transporte público: previsibilidade.

Logo, o problema não está somente no avanço dos concorrentes, mas principalmente na retração do transporte público, que entrega o jogo antes de entrar em campo, pra usar uma linguagem do futebol. Dimas Barreira é mais incisivo: “O mercado só ganha quando o poder público perde. O cliente não está correndo para o concorrente porque ele é brilhante. Ele está fugindo de um serviço que não entrega o mínimo”. Ou, de forma direta, o passageiro “desistiu” de esperar soluções, da mesma forma que desiste de esperar o ônibus que não vem.

Mas mesmo com o jogo a seu favor, alternativas como motos e carros por aplicativo investem pesado em comunicação e campanhas emocionalmente potentes, enquanto mostram apenas as vantagens — e omitem riscos e custos ocultos. O ruim está do lado de lá, no serviço prestado pelo poder público, dizem. Do lado de cá, temos a solução para seus problemas, com rapidez, agilidade, previsibilidade e custo baixo, prometem.

O ônibus, por sua vez, oferece viagens mais longas, intervalos irregulares e baixa informação em tempo real. Nessa altura já é possível listar como funciona esse movimento de fuga, e elencar, em ordem de acontecimentos, por que o poder concedente está perdendo um cliente que até outro dia era cativo.

“A cidade decide quem anda rápido. E hoje, quem anda rápido não é o ônibus”, afirma Lilli Matson, referência internacional em políticas de transporte sustentável.

“O passageiro paga mais porque existe menos passageiro pagando”, resume Branco, da ANTP. “É uma equação que não fecha.”

“Tecnologia sem prioridade viária é maquiagem cara”, diz Gautier Brodeo, atual presidente da UITP.

“Se a gratuidade não vier com capacidade adicional, o sistema implode. A demanda explode, mas a oferta não aumenta”, alerta Karolina de Jesus, do WRI.

“O transporte público fala pouco, fala tarde e fala mal. Quem se comunica melhor conquista não só clientes, mas narrativas. E hoje quem domina a narrativa da mobilidade são os aplicativos”, explica o consultor internacional Lúcio Mesquita, jornalista e estrategista de comunicação.

“O único caminho para reconquistar o cliente é devolver ao ônibus aquilo que ele perdeu: prioridade, confiabilidade e respeito”, afirma Branco.

“Transporte é prestação de serviço. E qualquer serviço que não se explica, não engaja e não informa perde relevância”, reforçou o jornalista e estrategista de comunicação Lúcio Mesquita no Arena ANTP – 2025.

A conclusão é evidente para quem se dispõe a enxergar: se o poder concedente não reagir, o sistema seguirá perdendo clientes, receita, capacidade operacional e, em última instância, a própria razão de existir.

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